Riscas e Estrelas


Passados dezasseis dias da minha chegada à terra do meu tio Sam (que segundo uma pesquisa que fiz na net é um parente afastado da prima em terceiro grau da cunhada do vizinho do primeiro andar de um amigo de um primo de uma das tias do meu pai que mora lá para os lados de Carrazeda de Ansiães), continuo a ser mais um extraterrestre em Marte. A distância cultural é grande, mas é no sentido práctico das coisas e da vida quotidiana que encontro a maior discrepância.

À medida que o tempo passa conheço mais e melhor esta cultura sintética e aprisionada na sua própria teia de pseudo-segurança, e dou mais valor aquelas pequenas coisas a que nos habituámos, lá na terrinha. A minha presença não passa despercebida, mas a proximidade plástica e simpatia obrigatória dos "locals" não me comove. Os serviços funcionam, mas as motivações gerais da classe operária/comercial são apenas características técnicamente básicas de uma formação profissional massiva e totalmente desprovida de características pessoais.

Sinto saudades. Coisas simples e outrora pouco significantes ganham agora um valor maior - beber um café passou a ser uma tarefa impossível, e passear na praia passou a ser demasiado complicado. Jantar fora passou a ser disgestivamente perigoso, e pedir uma cerveja passou a ser um acto de bravura... As ruas estão limpas, e existe vegetação por todo o lado, mas ninguém anda a pé e ninguém lê um livro à sombra de uma árvore.. Sinto que não há vida real nas redondezas, e que todos funcionam como uma comunidade de personagens automatizadas que se limitam a cumprir os procedimentos do software com o qual foram programadas na sua criação. Estão todos nos mesmos lugares, às mesmas horas a comer as mesmas coisas. Uma rotina aborrecida que é levada em mãos pelos sorrisos impostos pelos empórios comerciais, e que conduzem milhares de famílias ao tédio culturalmente aceite por estas gentes admiradoras do poder da sua nação. "God Bless America" é o grito de guerra que une estes milhares de seres.
E é chegada a hora de jantar, numa visita curta compro uma sandes na Subway, arriscando só o essêncial, sem molhos nem outras substâncias duvidosas. Uma bebida que tem de ser obrigatoriamente grande, e é sempre necessário pedir para não acrescentar batatas fritas - e o mais importante, nunca esquecer aquela parcela de cerca de 10% do valor da conta, que em palavras lusas seria chamada de "gorjeta", sendo que por estes lados, é socialmente obrigatória.
Sim, OBRIGATÓRIA.

The Big Easy



Em todos os continentes existem lendas, em todas as terras existem sítios lendários, e em todos os negócios existem pessoas lendárias. São histórias que se repetem de boca em boca durante anos, algo que alguém ouviu e contou a alguém que por acaso estava próximo... Histórias verídicas, histórias fantásticas, às vezes histórias com muita imaginação à mistura, outras que podemos apenas considerar mitos urbanos. Histórias em que realmente acreditamos, outras em que queremos acreditar. Umas fazem-nos sonhar, outras apenas nos fazem rir bem alto e fazer troça.

No sítio para onde vim existe um senhor simpático, alto e sorridente, magro e descontraído, jovial para os seus 55 anos de idade, que adora andar de bicicleta. Mike foi o fundador de uma grande empresa do ramo das bicicletas e acessórios, e ainda hoje assume a função de presidente. "Conta a lenda" que existe um percurso bastante habitual para Mike, e que se resume em partir da sua casa bem cedo, e atravessar as montanhas que separam Silicone Valley do Oceano Pacífico, através de estradas secundárias, labirínticas e serpentantes, chegar perto do mar, e voltar por estradas de categoria semelhante, e fazer este exercício físico e mental durante horas, atingindo distâncias respeitáveis e assustadoras para muitos, e regressar finalmente a sua casa, onde normalmente a sua esposa serve um refeição rica em hidratos de carbono.

The Big Easy, é a "voltinha habitual" que Mike adora fazer, e é talvez, na minha opinião, lendária. Não foi a primeira vez que ouvi referências de várias pessoas, até mesmo de gente sem qualquer ligação à empresa de Mike, e que a mensagem remetia para a dificuldade e a resistência necessária. Sentia-se sempre no ar um respeito e um sentimento de admiração geral cada vez que ouvi falar da "lendária Big Easy".

E eis que o inesperado (e temido), me acontece. Esta semana, no pequeno almoço de grupo que é servido na empresa todas as sextas feiras, Mike veio falar comigo, cumprimentou-me e perguntou se eu estava a gostar de cá estar... e se queria ir andar com ele no dia seguinte. Se existem alturas em que nos sentimos pequeninos, congelados, perplexos, encurralados ou amedrontados, este foi um desses momentos. Sorri em tons de amarelo canário. Hesitei... e disse que sim. Nestes momentos, até os mais bravos se calam, até os mais destemidos pensam duas vezes. Mike Sinyard convidou-me para a Big Easy - estou tramado, pensei. Mas nestas coisas dos desafios, há que arriscar. Eu não podia dizer que não, e mesmo o facto de estar ainda na fase de rescaldo de uma constipação, ou mesmo as noites mal dormidas iriam soar a desculpas falsas, e eu não me iria perdoar.

Sábado, oito da manhã, um frio de rachar e lá estamos nós, à porta da casa de Mike, nos arredores de Morgan Hill. Carregados de barras energéticas, água e quadradinhos de marmelada, como qualquer Indiana Jones antes da sua incurssão pelo desconhecido. Esta ia doer, era sabido. Saímos num grupo de cinco, e o ar gelado da manhã já fazia prever o desconforto que nos esperava. O número de colinas que ultrapassámos ficou gravado nos músculos das minhas pernas, as paisagens fantásticas destas florestas ficaram na minha mente, e as descidas rápidas e perigosas deixaram marcas nos meus travões.
Subidas íngremes, subidas lentas, subidas curtas e subidas longas, alcatrão velho, alcatrão novo, troços em terra batida (sim, em terra batida!), curvas longas em descidas velozes, curvas impossíveis em descidas suicidas, e longas rectas intermináveis em estradas ladeadas pelas famosas quintas californianas, onde se anda a cavalo, se faz bom vinho, e se constroem casas gigantes em madeira e gesso. Paragens curtas mas abençoadas, e cidades com ruas limpas e simpáticas, que apenas nos viam passar por breves segundos.

Chegámos a casa de Syniard por volta das três da tarde, com dores em pontos nos quais eu desconhecia que era possível ter dores, almocei um spaguetti de trigo e uma salada verde e soculenta. Um sorriso na cara de todos dizia bem alto: This was a hell of a ride, wasn't it?!

Pessoalmente sei que esta foi uma experiência que não vou esquecer. As 83 milhas (para os distraídos são mais coisa menos coisa cerca de 133.57kms de alcatrão português), pesam-me nas pernas, mas o sentimento de realização pessoal ultrapassa as dores que sinto.

Hoje foi um dia memorável, pois vivi a lendária "Big Easy".

Ouro Negro


Hello fellows americans! Pois é, meus amigos, esta é sem dúvida uma sociedade muito diferente da nossa. Não me são estranhas as guerras que se vêem por aí, guerras que existem não para lutar pela liberdade, não pela justiça, mas por petróleo. Sim, não é pelo povo, ou pela liberdade de expressão, não pelo ouro, não pelos dólares, não pelo minério ou praias paradisíacas, ou terras férteis, ou mesmo diamantes, pedras preciosas... mas pelo petróleo.

É ele o que move esta nação.


Desde que cheguei procuro perceber que transporte poderei usar. Depois da aventura do meu primeiro fim de semana, resolvi racionalizar o meu pensamento, e admitir que andar a pé nesta cidade é impracticável. Tentei a bicicleta, que funciona na perfeição, mas as horas tardias em que chego "a casa", e as horas tardias em que abandono " o lar", não permitem uma utilização segura do meu veículo de eleição.


E lá está, voltamos à política. Numa terra devota à larga escala generalizada, onde tudo é grande sem razão aparente, onde o exagero faz parte do habitual anormal, onde o "mais é melhor" governa a razão e a medida... é tudo simplesmente gigante. Assim, pessoas, casas, estradas, carros, armazéns... you name it - são GRANDES.


Petróleo. Sim, petróleo. Neste país de dimensões continentais, é ele, o petróleo, que governa. E governa porque as artérias que levam e trazem o sangue para o coração do país, trabalham a gasolina. Sim, a gasolina.


Então todos nós, americanos, temos de ter carro. TEMOS de ter carro para ir ao supermercado, para ir ao restaurante, para a escola ou para o emprego. Temos de ter carro para levar a criança ao médico, mas também para ir ao drive-in do McDonald's, para ir passear o cão ao parque, ou para ir comprar o jornal. Temos de ter carro para ir procurar um "café" na esquina remota de um parque comercial, e temos de ter um carro para procurar um local que venda vitaminas para as constipações. Temos de ter um carro e temos de consumir gasolina.


E que tal este belo exemplo que encontrei ainda ontem? Alguém está interessado?

The Room


Só hoje tive algum tempo para parar e olhar em meu redor. Vejo um quarto de hotel típico daquelas séries policiais que passavam na televisão, e a que nos habituámos viciadamente a ver. O chão alcatifado lembra-me o CSI, onde todos os dias são descobertas amostras de dna dos assassinos em fuga. Por curiosidade, também aqui se pode ligar a TV e ver episódios do CSI em vários canais, às vezes simultaneamente.


Suficientemente grande, uma cama "king bed", a/c, uma casa de banho espaçosa, uma tábua de passar a ferro e o respectivo junto da zona de arrumação e uma mini cozinha logo na entrada indica que este é um hotel diferente.

Trata-se da cadeia Extended Stay America, que se dedica a disponibilizar quartos para estadia prolongadas, com serviço de cozinha - ah, é verdade, também tenho um frigorífico e um micro wave! Cool!! Posso aquecer pizzas e beber cerveja fria!!!


Para hoje, o menu é apple & cinnamon muffin (gigante) e um chazinho feito aqui pelo JE, que já descobriu onde andam as panelas desta casa. Enquanto aqueço a água e improviso a mesa para este maravilhoso e suculento snack, não consigo deixar de pensar no programa "Survivor".

Eles pelo menos podiam apanhar fruta das árvores...

Apple pie




Pois é, depois da primeira semana de adaptação vejo-me sozinho com um fim de semana pela frente. Perdi o mapa que, à cautela, decidi comprar logo na primeira noite, na primeira oportunidade que tive. Então lá vamos, mochila às costas, mp3 e máquina fotográfica, em busca de um pequeno almoço nesta selva desconhecida. Quinze minutos de deambulação depois, eis que encontro uma zona comercial que furtuita e curiosamente se situa mesmo nas traseiras do hotel...


Comida, café quentinho, cheirinho a pastéis de nata acabadinhos de fazer, e torradas, há torradas!? Não. Nem café, nem restaurante, nem snack bar, nem mesmo uma taberna de esquina com garrafões de vinho sete estrelas a decorar o balcão. Avisto um McDonald's, um Subway, um Denni's e outros nomes menos sonantes. Existe também uma loja de roupa com um ar extremamente intimidador, um centro de explicações e um banco. Um supermercado servia perfeitamente, mas e onde está ele? Nada. Dou uma longa volta ao imenso parque de estacionamento, fotografo uma colecção de Mustangs de várias cores e modelos (aqui parece que nascem nas árvores). E encontro um estabelecimento com um ar bastante abandonado, numa esquina estranha e aparentemente deserta - e que se chama "café"! Estou quase emocionado, e solto um soluço enquanto bebo um café horrível, servido no característico copo de plástico, por uma loura de peitos enooormes, cheia de acessórios metálicos em sítios que não me atrevo a descrever, e que não consigo classificar, e mordo uma coisa a que deram o nome de apple pie. É mau, mas enche o depósito de resíduos industriais (passei a chamar assim o meu estomago depois de uma semana inteira de comida local).


Mas nem tudo é mau. O talão do restaurante do dia seguinte é um sinal de que todas as culturas têm um lado bom...pelo menos menos mau... ou seja, correcto. Mais ou menos. Ou então não.



Arrival to a Near Future


A aventura começou.
Faro - Lisboa - Londres - São Francisco

Depois de uma viagem longa e solitária, eis que chego ao meu destino. SFO, depois de uma aterragem perfeita, recebeu-me de braços abertos, sem muitas paragens nos senhores das fardas escuras e das perguntas parvas. A caminho dos tapetes o sol da Califónia mostrou-se presente e muito vivo, e eu mostro-lhe o meu sorriso. De casa às costas saio e lá está o meu primeiro contacto extraterrestre na terra do Tio Sam. Um gigante sorridente, negro como o carvão, barbudo como o Pai Natal, mostrava imponente uma placa - Mr Teixeira, Specialized.
Dois metros de altura, cabelo longo e muito encaracolado, um fato que mais parecia uma peça do guarda-roupa do Ocean's Eleven, e uns óculos de armação dourada, grandes como uma marquise, e pirosos como o último sucesso do nosso grande Toy. Simpático e conversador, indica-me o caminho para o shuttle, e lá vamos nós. Creio que é a minha primeira vez num Cadillac, quanto luxo. A caminho, e entre frases curtas e espaçadas pela inexistência de assunto, pergunta-me se quero ouvir música. É claro que sim!
Barry White... fantástico. Relaxo, olho a paisagem que deixamos para trás. De repente apercebo-me que o som está diferente, mais vivo, e num olhar rápido e curioso apercebo-me que o meu amigo Kenny cantava as palavras de Barry White como nunca imaginei possível. Estava na presença de Kenny Smith, que para além de trabalhar como motorista, é o "United States number one Barry White impersonator" e foi, imaginem, convidado pelo Spyke Lee para fazer parte do elenco para um novo filme que retrata a vida e obra de Barry White.

Não tenho dúvidas que ainda vamos ver e ouvir muito sobre este personagem - o meu primeiro "amigo" em solo californiano.
A "freeway 101" leva-nos directamente para Silicone Valley, mais precisamente Morgan Hill.