The Big Easy



Em todos os continentes existem lendas, em todas as terras existem sítios lendários, e em todos os negócios existem pessoas lendárias. São histórias que se repetem de boca em boca durante anos, algo que alguém ouviu e contou a alguém que por acaso estava próximo... Histórias verídicas, histórias fantásticas, às vezes histórias com muita imaginação à mistura, outras que podemos apenas considerar mitos urbanos. Histórias em que realmente acreditamos, outras em que queremos acreditar. Umas fazem-nos sonhar, outras apenas nos fazem rir bem alto e fazer troça.

No sítio para onde vim existe um senhor simpático, alto e sorridente, magro e descontraído, jovial para os seus 55 anos de idade, que adora andar de bicicleta. Mike foi o fundador de uma grande empresa do ramo das bicicletas e acessórios, e ainda hoje assume a função de presidente. "Conta a lenda" que existe um percurso bastante habitual para Mike, e que se resume em partir da sua casa bem cedo, e atravessar as montanhas que separam Silicone Valley do Oceano Pacífico, através de estradas secundárias, labirínticas e serpentantes, chegar perto do mar, e voltar por estradas de categoria semelhante, e fazer este exercício físico e mental durante horas, atingindo distâncias respeitáveis e assustadoras para muitos, e regressar finalmente a sua casa, onde normalmente a sua esposa serve um refeição rica em hidratos de carbono.

The Big Easy, é a "voltinha habitual" que Mike adora fazer, e é talvez, na minha opinião, lendária. Não foi a primeira vez que ouvi referências de várias pessoas, até mesmo de gente sem qualquer ligação à empresa de Mike, e que a mensagem remetia para a dificuldade e a resistência necessária. Sentia-se sempre no ar um respeito e um sentimento de admiração geral cada vez que ouvi falar da "lendária Big Easy".

E eis que o inesperado (e temido), me acontece. Esta semana, no pequeno almoço de grupo que é servido na empresa todas as sextas feiras, Mike veio falar comigo, cumprimentou-me e perguntou se eu estava a gostar de cá estar... e se queria ir andar com ele no dia seguinte. Se existem alturas em que nos sentimos pequeninos, congelados, perplexos, encurralados ou amedrontados, este foi um desses momentos. Sorri em tons de amarelo canário. Hesitei... e disse que sim. Nestes momentos, até os mais bravos se calam, até os mais destemidos pensam duas vezes. Mike Sinyard convidou-me para a Big Easy - estou tramado, pensei. Mas nestas coisas dos desafios, há que arriscar. Eu não podia dizer que não, e mesmo o facto de estar ainda na fase de rescaldo de uma constipação, ou mesmo as noites mal dormidas iriam soar a desculpas falsas, e eu não me iria perdoar.

Sábado, oito da manhã, um frio de rachar e lá estamos nós, à porta da casa de Mike, nos arredores de Morgan Hill. Carregados de barras energéticas, água e quadradinhos de marmelada, como qualquer Indiana Jones antes da sua incurssão pelo desconhecido. Esta ia doer, era sabido. Saímos num grupo de cinco, e o ar gelado da manhã já fazia prever o desconforto que nos esperava. O número de colinas que ultrapassámos ficou gravado nos músculos das minhas pernas, as paisagens fantásticas destas florestas ficaram na minha mente, e as descidas rápidas e perigosas deixaram marcas nos meus travões.
Subidas íngremes, subidas lentas, subidas curtas e subidas longas, alcatrão velho, alcatrão novo, troços em terra batida (sim, em terra batida!), curvas longas em descidas velozes, curvas impossíveis em descidas suicidas, e longas rectas intermináveis em estradas ladeadas pelas famosas quintas californianas, onde se anda a cavalo, se faz bom vinho, e se constroem casas gigantes em madeira e gesso. Paragens curtas mas abençoadas, e cidades com ruas limpas e simpáticas, que apenas nos viam passar por breves segundos.

Chegámos a casa de Syniard por volta das três da tarde, com dores em pontos nos quais eu desconhecia que era possível ter dores, almocei um spaguetti de trigo e uma salada verde e soculenta. Um sorriso na cara de todos dizia bem alto: This was a hell of a ride, wasn't it?!

Pessoalmente sei que esta foi uma experiência que não vou esquecer. As 83 milhas (para os distraídos são mais coisa menos coisa cerca de 133.57kms de alcatrão português), pesam-me nas pernas, mas o sentimento de realização pessoal ultrapassa as dores que sinto.

Hoje foi um dia memorável, pois vivi a lendária "Big Easy".